Mito de Rudá
Rudá, o Deus do Amor
No começo, ainda no silêncio… muito silêncio… …havia a escuridão, muita escuridão.
Nada se via. Nem olhos havia para ver. Escuro, muito escuro.
Então nasceu o Sol, Guaraci.
Desde o primeiro dia, Guaraci nasceu como sempre nasceu: devagarinho, primeiro um clarão no nascente, depois uma bola de luz vermelha… ia clareando e subindo… subindo… subindo… e ia clareando tudo, iluminando tudo, aquecendo tudo, derramando vida em tudo…
Mas o tudo, no começo, era quase nada.
Então Guaraci viu aquele nada e começou a criar…
Criou as águas, muitas águas: águas de sal, águas doces, águas de jorrar do céu…
Depois criou as terras, muitas terras… Entremeando as terras, águas que corriam, águas que paravam… As águas se movimentavam e as terras também… e Guaraci gostava daquele movimento.
E de ver aquele movimento, Guaraci criou o vento, que também se movimenta. Às vezes forte, tufão, furacão… às vezes leve, brisa calma e refrescante.
E Guaraci, bola de fogo, esquentava tudo aquilo. E criava.
Criava peixes, de espécies e cores diferentes, que viviam nas águas, cada qual com o seu tamanho…
Criava animais de espécies e cores diferentes, que viviam nas terras, cada qual com o seu tamanho…
Criava vegetais, de espécies e cores diferentes, que viviam nas águas e nas terras, também com tamanhos diferentes…
Criava pássaros e insetos para povoar o ar… sempre de espécies e cores e tamanhos diferentes…
E todos eles faziam sons diferentes… cada um do seu jeito.
E de tanto criar tantas coisas, tanta natureza, tudo tão bonito… ah… Guaraci ficou cansado.
Ficou muito, muito cansado… e foi ficando com muito sono… precisou dormir.
Foi fechando os olhos, bem devagarinho, e quando fechou os olhos de vez, tudo ficou escuro, muito escuro. Guaraci não podia ver mais nada de tudo que havia criado. Enquanto dormia, só a escuridão.
Ah… cadê tudo aquilo tão bonito? Guaraci queria ver aquilo tudo de novo… mas estava tão cansado… Ainda queria descansar mais, mas estava tão sozinho…
Nesse sono ou nesse sonho, no meio dessa escuridão toda, Guaraci criou a Lua, Jaci. Mas foi no meio do seu sono, quando estava tudo escuro.
Foi assim: lá longe, Guaraci viu chegando um clarão, no coração da escuridão. Aquele clarão foi crescendo, foi se abrindo no escuro da noite, e foi se apresentando.
Subindo no céu, foi surgindo ela, Jaci, primeiro como uma bola amarela, cor de laranja, as laranjas que Guaraci tinha criado antes.
Depois Jaci, a Lua, subia, e subia, e quanto mais alta subia, o seu brilho virava prata, e fazia um lindo clarão iluminando toda a natureza.
Era lindo o brilho nas águas, clarão nas montanhas… e outros sons se faziam, os sons da noite.
Era uma Lua tão bonita que Guaraci nessa mesma noite de sono ou de sonho, apaixonou-se por ela. Um sentimento tão bom… ela era tão bonita… e mostrava, do seu modo especial, do modo mesmo de Jaci, ela mostrava tudo aquilo que ele tinha criado.
Guaraci ficou muito encantado e tão apaixonado que abriu os olhos para poder vê-la e admirá-la melhor… mas ah… quando abria os olhos, tudo se iluminava de um jeito mais forte e colorido, e ela desaparecia…
E ele queria mostrar a ela o quanto era bonita toda aquela natureza, com suas flores e cores…
Mas ela não estava mais lá. E ele procurava, procurava… e ela não estava mais lá.
De tanto procurar por Jaci, novamente Guaraci ficou cansado, muito cansado… e novamente fechou os olhos para dormir um pouco. E enquanto dormia, lá vinha ela, fazendo o seu desfile no fundo da escuridão, com seu lume, com seu jeito de se apresentar e de mudar de ouro em prata… Era mesmo muito bela, Jaci.
E Guaraci queria dizer de seu amor por ela, e o quanto de lindo havia quando ela não estava…
E queria dizer que quando abria os olhos para chegar a ela, tudo clareava e ela sumia. E queria dizer também que quando tudo se iluminava e ela desaparecia.
Então Guaraci criou Rudá, o mensageiro de seu amor…
Para dizer a ela o que se sentia quando ela crescia no escuro do seu sono…
E que, na clareza do seu sonho, ele a admirava.
E ele queria também mostrar a ela quantas coisas lindas havia quando ele estava de olhos abertos…
E como ele se sentia só quando ela desaparecia…
Foi assim que nasceu Rudá, o amor. Porque o AMOR não conhece luz ou escuridão e podia levar a Jaci a mensagem de Guaraci. Dia ou noite, Rudá, o AMOR, podia dizer à Lua Jaci o quanto o Sol Guaraci era apaixonado por ela.
E, ao levar a mensagem a Jaci, ela, por sua vez, mandou também uma mensagem de volta, dizendo o quanto ela achava lindo tudo o quanto ele fazia…
que ela passava a noite admirando todas as águas, todos os peixes, todas as terras e todos os seres que vivem na terra, todos os pássaros da noite, que se deliciava com a brisa suave, que ouvia os sons da noite, contraponto dos sons do dia…
E Rudá, o AMOR, levava a mensagem de Jaci a Guaraci, que sempre ficava tão feliz que novamente abria os olhos e iluminava tudo durante o dia… E novamente mandava por Rudá, nova mensagem de amor.
E por Rudá, Jaci mandava também outra mensagem de amor, dizendo que a luz que ela brilhava também vinha dele, do amor que ele tinha. E que ela também se sentia só e sentia muita saudade, quando Guaraci abria seus olhos iluminando tudo, mas que ela o amava e queria que ele soubesse disso. E Rudá levou a mensagem.
Então Guaraci criou algumas estrelas, mais estrelas, muitas estrelas, cada uma com um tamanho e brilho diferente para cintilar no céu e alegrar Jaci, fazendo companhia a ela enquanto ele dormia.
E até hoje, Rudá, o filho do Sol, nascido para ser o mensageiro do amor de Guaraci por Jaci, vive dia e noite, cumprindo sua missão.
Ele é encarregado de reproduzir os seres criados, pois Guaraci e Jaci querem sempre mostrar um ao outro uma coisa diferente. E todos os dias e todas as noites Rudá, que vive nas nuvens, fortalece esse amor com suas mensagens.
Ele também tem a missão de criar o amor no coração dos homens, despertando o amor como aquele de Guaraci por Jaci e de Jaci por Guaraci. O amor feito de admiração e de respeito pelo brilho do outro, pois cada um tem seu jeito próprio de brilhar. O amor feito de saudade, de beleza, de encantamento. O amor também pela Terra, pelos mares, pelos rios, pelas árvores, pelos animais, pelos homens, pelas mulheres e entre todos, porque afinal todos são admirados de dia e de noite por Guaraci e Jaci.
Esta é a história de Rudá, o Deus do Amor.
É uma história de amor, da mitologia tupi-guarani, em adaptação de Couto de Magalhães.
Interpretação do Mito
Falar de um mito é acessar o inventário imagético de cada cultura particular, que se manifesta diferenciadamente, mas que encontra em sua sustentação a mesma matriz arquetípica universal. Interpretar um mito Tupi –Guarani é encontrar uma parte da face brasileira de deuses, que nos arrebatam e assombram de forma específica, desde nossas raízes mais primitivas.
Dentre esses, encontramos essa tríade divina superior indigenista, representando o Sol (Guaraci), a Lua (Jaci) e o Amor (Rudá).
Há muito que o sol vem sendo associado à energia criativa e assertiva do masculino, enquanto a Lua expressa a receptividade e o acolhimento feminino. Razão e afeto, amantes apaixonados, porém separados pelo descuido de uma civilização que descarrilou do essencial. Esse casamento sagrado está nas bases de todas as tradições ancestrais e foi respeitosamente tomado de empréstimo pela psicologia profunda.
No plano pessoal, a despedida entre pensamento e sentimento agoniza na saudade de uma personalidade cindida e resgatar essa união é vital para que se encontre a integralidade da alma.
Quem sabe por isso, Guaraci, em sua sabedoria, percebeu que nada mais seria capaz de promover seu enlace com Jaci, núpcias sagradas que harmonizam a tensão dos contrários, se não fosse pela ação mágica do amor puro de Rudá.
O Amor – único artífice capaz de forjar a aliança torneada entre a inteligência e a sensibilidade, matéria vital para transformar a qualidade do homem contemporâneo.
Também podemos significar o sol como a clareza que caracteriza a consciência e, em contrapartida, a noite que veste a lua, como a simbolização do que nos é cego, oculto e, portanto, nos está inconsciente. Se assim for, Rudá, o Amor, é aquele que liga, resgatando à luz, das mãos estranhas da sombra, o que rejeitamos ou fomos impedidos de conhecer. E assim, ao desvelarmos o desamado e reconhecermos nele algo de íntimo, podemos ser tomados pela própria compaixão. Ego ferido entregue ao colo de sua amorosidade, pode agora enamorar-se de cada parte desagregada da personalidade, mesmo as mais repulsadas, que estavam projetadas no mundo exterior, ansiosas para retornar para casa.
Vemos então, expressa no mito de Rudá, a proposta do grupo de terapeutas e facilitadores da Terra de Rudá: oportunizar o encontro da inteireza daqueles que percebem e desejam experimentar o caminho inspirado no Ser, cuja possibilidade de expressão depende de escolhas corajosas e discernidas para que, enfim, o Amor Verdadeiro aconteça.