O HOMEM SEM SORTE

Postado em: setembro 6th, 2020 por Rosa Valgode

Era uma vez um homem que se achava completamente sem sorte.

Nada do que ele fazia dava certo.  Parece que tudo o que fazia dava errado.

Muitas vezes ele plantava sementes e o vento vinha e as levava.

Outras vezes, era a chuva, que vinha tão violenta que carregava as mudas que brotavam.

Outras vezes, as sementes permaneciam sob a terra, mas o sol era tão quente que as cozinhava.

Muitas coisas ruins aconteciam sem que ele soubesse o porquê.

E ele se queixava com as pessoas e elas escutavam suas queixas – da primeira vez com simpatia, depois com certo desconforto e, por fim, quando o viam, mudavam de caminho ou entravam para dentro de suas casas, fechando portas e janelas, para o evitar.

Então, além de sem sorte, o homem se tornou tristonho, chato e muito só.

Ele começou a querer achar um culpado para o que acontecia com ele, mas não encontrou.  Em sua família, percebeu que seu pai era um homem de sorte; sua mãe, também, pois tinha se casado com seu pai, seus irmãos estavam bem…  Olhou ao redor e viu que muitos de seus vizinhos também viviam bem, satisfeitos com a vida que tinham.

E depois de muito pensar resolveu tomar uma atitude:

– Já sei!  Vou falar com o Criador de todas as coisas que vivem e respiram. É claro!  Se Ele me fez assim, sem sorte, deve ter uma resposta.  Ele pode mudar a minha vida e me tornar um homem de sorte!

Arrumou sua malinha, colocou ali as coisas que achava importante levar consigo, algum alimento e partiu rumo ao fim do mundo.

Andou um dia, um mês, um ano e um dia, até chegar numa grande floresta, com árvores muito grandes e galhos que quase atingiam o céu.

– Ah – disse para si mesmo – esse deve ser o lugar onde vive Deus.  Entrou calmamente na floresta, olhando para a direita e para a esquerda, para ver se encontrava o Criador.  De repente, ouviu uma voz:

– Moço, me ajude…

Ele deu um passo para trás, assustando-se ao ouvir aquele grito.  Olhou para um lado e para outro, procurando alguém e viu que à sua frente, atrás de um mato, havia um lobo.

Ele se deparou com um lobo diferente, magro, amarelado, quase sem pelos; era pele e osso o infeliz.  Dava para contar suas costelas. O lobo falou:

– Estou tão doente… Há três meses estou assim.  Não sei o que está acontecendo comigo. Não tenho forças para me levantar daqui.  Por favor, me ajude, preciso de ajuda.

Refeito do susto, o homem olhou para o lobo e disse:

– Você precisa de ajuda? Eu é que preciso de ajuda.  Você está se queixando à toa, Você tem estado doente por alguns meses, mas eu tive azar a vida inteira.  O que são três meses? Você me vê reclamando e pedindo ajuda para outras pessoas?  Claro que não!  Faça como eu.  Procure uma resposta. Eu estou indo procurar o Criador de todas as coisas que vivem e respiram, para resolver o meu problema.

– Ah! Isso é muito corajoso!  Mas eu estou tão doente que não posso caminhar, não tenho forças nem para ir ao rio beber água… Faça este favor para mim. Você está indo vê-lo, pergunte o que está acontecendo comigo e o que posso fazer para melhorar.

O homem fez um sinal de insatisfação e disse que estava muito preocupado com seu problema, mas… se lembrasse, perguntaria.

Virando as costas, foi-se embora.  Ia correndo floresta adentro, dizendo: “Estou quase chegando lá, estou quase lá!”.

Andou um dia, um mês, um ano e um dia e de repente, ao tropeçar numa raiz, ouviu:

– Ahhhh! Moço, cuidado.

– O que é isso agora?

E quando olhou, viu uma folhinha que vinha caindo, caindo… Olhando para cima viu que era uma árvore que estava toda quebrada, caída, com as raízes desenterradas, os galhos retorcidos, muito feia, descascada, folhas ressecadas, horrível.  O homem falou:

– Você não tem vergonha? Olhe as outras árvores à sua volta e diga se você pode ser chamada de árvore? Conserte sua postura.

A árvore, com uma voz de muita dor, disse:

– Não sei o que está acontecendo comigo. Estou me sentindo tão doente. Há seis meses que minhas folhas estão caindo, e agora, como vê, só restam duas…  Por favor, me ajude.

– Por que eu deveria te ajudar?  O que você fez por mim? Nada! Ao invés de ficar aí se queixando, faça alguma coisa, como eu, que estou indo me encontrar com o Criador.

– Mas eu não posso me mover, eu sou apenas uma árvore.  Por favor, peça ao Criador para me ajudar.

Contrariado, o homem virou as costas com mais esta incumbência e saiu dizendo:

– Vou pensar sobre isso.  E foi-se embora, andando cada vez mais depressa.

Andou um dia, um mês, um ano e um dia e chegou a um vale muito florido, com flores de todas as cores e perfumes, árvores frutíferas, um riacho límpido.  No final deste campo havia uma linda casinha.

– Ah!  Aquela deve ser a casa do Criador.

Correu até lá, sem reparar nas flores que ia pisando pelo caminho.

Na frente da casa estava uma moça muito bonita sentada na varanda.  Ela lhe deu boas vindas e lhe ofereceu chá, bolo, biscoitos e tudo o que de melhor ela tinha na casa.  Ela foi tão boa que ele ficou ali, conversando na varanda.  Conversaram por um longo tempo.  Pela primeira vez na vida, teve a oportunidade de contar todos os seus problemas a alguém.   Quando o homem deu por si, já era madrugada.

Ele se levantou dizendo que não podia perder tempo e, quando já ia saindo, ela pediu:

– Olha, eu tenho uma vida boa aqui, mas às vezes, me sinto um pouco sozinha, um vazio no peito, que não tem motivo, nem explicação.  Talvez você possa perguntar ao Criador se Ele tem algum conselho para mandar para mim.  Gostaria de saber o que é e o que posso fazer.

O homem disse que ia tentar se lembrar disso, virou as costas e se foi.

Andou um dia, um mês, um ano e um dia e chegou por fim ao fim do mundo.

Lá não havia nada, somente um espaço vazio.  Até as cores da paisagem tinham desaparecido.  Neste momento, o homem se sentiu inseguro de si mesmo, pois se deu conta de que não sabia como falar com Deus.  Sentou-se para pensar e estava tão mergulhado em seus pensamentos, que não reparou que uma nuvem estava se formando à sua frente.  De dentro dessa nuvem saía uma luz.  E dessa luz saiu uma voz suave, que disse:

– Bem vindo.

Era uma voz no fim do mundo, só podia ser a voz do Criador de todas as coisas que vivem e respiram, mas como ele já tinha encontrado tantas criaturas pelo caminho, resolveu perguntar:

– Você é o Criador?

– Tenho muitos nomes. Chamam-me também de Criador…  Mas estou certo de que não foi por isso que você veio me ver.

O homem começou a sentir que seu coração se abria e percebeu que podia dizer e sentir o que quisesse que aquela voz o ajudaria.  Então contou toda a sua triste vida, com todos os detalhes, falou das sementes, dos pais, dos irmãos, dos vizinhos… e de sua falta de sorte.  Ficou por muito tempo falando, ouviu tudo que a voz tinha a lhe dizer, até que percebeu que a nuvem estava indo embora e as cores começavam a voltar à paisagem.

Então se levantou e virando as costas foi saindo, quando a voz lhe perguntou:

– Você não está se esquecendo de nada? Não ficou de saber respostas para uma árvore,  para um lobo e para uma jovem?

– Ah, é. Tem razão…

E voltou-se para ouvir o que faltava.  Depois de um tempinho virou-se e correu… mais rápido que o vento até que chegou na casa da jovem.

Ela estava na varanda e, ao ver o homem passar, chamou:

– Ei!!! Você que vai aí correndo, deve estar com fome.  Acabei de preparar o almoço.

O homem sentiu um cheiro de comida muito gostosa, bem fresquinha, e acabou entrando.  Viu a mesa posta com tantas comidas deliciosas… Tinha tudo quanto era comida gostosa que você possa pensar.  O homem comeu bastante.

E a moça perguntou:

– Você conseguiu encontrar o Criador? Teve as respostas que queria?

– Sim!!! Claro! O Criador disse que minha sorte está no mundo, que está bem à minha frente e que eu deveria ir ao seu encontro.  Disse que o mundo me oferece infinitas possibilidades, basta eu prestar atenção… e ficar atento para perceber a hora de apanhá-la! É isso que vou fazer: encontrar a minha sorte.

– E quanto a mim, você teve a chance de fazer a minha pergunta? – a moça perguntou.

– Ah! O Criador disse que o que você sente é solidão. Assim que encontrar uma companhia, vai ser completamente feliz, e mais feliz ainda vai ser o seu companheiro.

A jovem então abriu um sorriso.  Estava um pouco envergonhada, mas tomou coragem e perguntou:

– Você não gostaria de ficar aqui comigo?

– Claro que não… Já trouxe a sua resposta. Eu estou procurando minha sorte. Não posso perder tempo, não posso ficar aqui comendo e bebendo e conversando com você.  Não foi para isso que fiz toda esta jornada. Você deve procurar outra pessoa.  Tchaaaau!!!

E virando as costas correu, mais rápido do que a água, olhando para a direita e para a esquerda, para cima e para baixo, a procurar sua sorte, até chegar à floresta onde estava a árvore. Ele nem se lembrava dela, tropeçou de novo em sua raiz e viu cair uma última folhinha.

– Ah, você está aí, encontrou o Criador?  Tem alguma resposta para mim?

– Encontrei sim, mas não tenho tempo para falar com você agora.  Tenho muita pressa, pois estou indo em busca da minha sorte, pois há muitas oportunidades no mundo para mim, basta eu estar atento.

– E para a minha doença, ele disse alguma coisa?

– Ah, sim.  O Criador disse que você alguma coisa presa nas suas raízes.  Bem embaixo de suas raízes tem uma caixa de ferro cheia de moedas de ouro. O ferro desta caixa está envenenando suas raízes e fazendo você ficar doente. Se você cavar e tirar este  tesouro daí vai terminar todo o seu sofrimento e você vai poder voltar a ser uma árvore saudável novamente.

– Por favor! Faça isto por mim! Eu sou uma árvore, não posso cavar.  Você pode ficar com o tesouro.   Ele não serve para mim. Eu só quero de novo minha força e energia.

O homem deu um pulo e falou indignado:

– Você está me achando com cara de quê? Já trouxe a resposta, agora resolva o seu problema. O Criador falou que minha sorte está nas oportunidades do mundo e eu não posso perder tempo aqui conversando, muito menos sujando minhas mãos na terra.  Trate de encontrar outro para fazer isso.

E virando as costas correu, mais rápido do que a luz, atravessou a floresta, sempre olhando em todas as direções, procurando a sua sorte.  Corria tão rápido que nem percebeu que ia tropeçando no lobo, mais magro ainda e mais fraco.

– Ei, moço, venha cá… Espero que você tenha falado com Deus, pois eu sinto que não tenho mais tempo de vida.  O Criador falou alguma coisa sobre mim?

O homem se dirigiu a ele com pressa e disse:

– Falou, falou sim.  O Criador de todas as coisas que vivem e respiram mandou lhe dizer que o seu problema é fome, você está morrendo de inanição.  Ele disse que você deve esperar aqui até que a criatura mais boba e distraída cruze o seu caminho; então você a come e mata a sua fome. Como não tem forças mais para sair e caçar, eu acho que vai morrer aí mesmo, por que só quando passar por aqui uma criatura muito burra e bastante estúpida…

E nesse momento, os olhos do lobo se encheram de um brilho estranho, a boca do lobo foi se enchendo d’água, e reunindo todo o restante das forças que tinha, o lobo deu um salto e comeu, de uma vez só, o homem sem sorte.

O Homem Sem Sorte – conto popular recontado por Inno Sorzy

Ed. Caravana de Sonhos, 1998.