A História de Um Novo Mundo Velho – Sergio Seixas e Lygia Franklin
- A História de Um Novo Mundo Velho – Sergio Seixas e Lygia Franklin
Cabral atravessou marzão e deu nas praias de gente de pinto de fora. Para trás, uma Europa emergente de sua burguesia espreitava os oceanos como mercados de seus lucros. Ela, esta velha senhora, cansada de seu espelho e desejosa por imagens luxuriantes de um rejuvenescimento econômico, ventava as caravelas de imprevisíveis sonhos. Imaginárias, as Tordesilhas fatiavam o mundo luso-espanhol em uma corrida oportunista. Havia suficiente inconsciência para predar-se o que melhor prouvesse.
Eldorado, na fantasia de instintos cruéis de civilidade, era tudo que reluzisse ganhos. Foi então que Cabral e sua turma, em fétidos dias de convés a pleno sol, mareavam erráticos em direção às Índias. As especiarias. Pimenta, cravo, canela, gengibre… fariam do Oriente uma missão portuguesa. Que estranha sorte de condimentos tão acalorados serviria de isca para uma alma que ainda não se descobriu buscadora de seu Oriente? Aqui, Vera Cruz, era de uma beleza sem vergonha e Caminha, o escrivão, do púlpito de Dioniso, deu-nos a descrição de irracionalidades espetaculares. Foi neste solo quente de preguiças amorfas que o padre rezou. Pela primeira vez profanada a inocência dos canibais, a missa maculou o espontâneo. Uma miscigenação libidinal coloria os trópicos de híbridas crianças. Os mestiços pululavam à revelia do trabalho, em horas da mais tenra sacanagem. Terra da Mãe Joana, o pau-brasil era arrancado com a fúria da oportunidade. E o medo disso aqui virar um puteiro das ideologias?! João terceiro inventou capitanias. Hereditárias, nasceram com a vocação vitalícia. Nesgas de trópicos cedidas a nobres com intenções de ordenhas viris. São Vicente, Santana, Bahia de Todos os Santos… acomodavam os que lá chegavam, de quintais da colônia, promissores como um futuro. Também as invasões preocupavam os senhores. Corsários de aristocráticas pátrias vinham em busca de tetas leitosas. Este cadinho de vale-tudo parecia formoso o bastante para penetras e afins.
Incrustados na alma tupiniquim, Villegagnon e mais tarde Nassau, prometiam roubar de nosso fado, suas tristes promessas e encher a mata de salões efeminados de sensibilidades e bons costumes. Não só de guarda vivia o português. Queria-se mais. Aquelas terras iam bem mais longe que o olhar podia predar. Entradas e Bandeiras empurravam o invasor na direção de invisíveis limites e, do interior de tamanha enormidade, a competência exploratória infecciosa ao pedágio da malária exercia brutal triagem. Governadores brotavam na razão direta de seus interesses ameaçados. Caraíbas, Nuaruaques, Tapuias e Tupis eram detalhes. Úteis, às vezes ajudavam quando não morriam inadaptados em sua própria terra. Sem vocação para o trabalho escravo, estes homens livres sucumbiam à redundância não criativa de seus esforços e caídos ao solo adubavam, com seus corpos, aquela que, para os colonos era a outra, a concubina, mulher fora de casa para a qual clandestinos momentos pudessem ser dedicados na usura de deleites imorais. Suas culturas eram alienígenas à lógica branca. Seus patrimônios espirituais seriam alvo de um catequismo ateu, pois só um deus ilegítimo quereria roubar da prece de uma dança a seiva que os protegeria de ritos destroçados de seus símbolos sélficos. Jesuítas importavam, à rodo, cristos do pau oco que se deleitavam com fetiches de homenzinhos esquecidos no trabalho da sobrevida. Um luto colorido começava a enraizar na alma daqueles que nasceriam no porvir. Mas não só os xamãs de Pindorama seriam mártires da ignorância, dos navios negreiros desceriam ilustres ancestrais de uma África matriz que, em sacrifício, dariam o suor, o ritmo, o sexo e uma exuberante gargalhada pelo inevitável que se cumpria. Estes pretos cor de sim expunham os portugueses as suas indolências autoritárias. Dos canaviais, um Brasil doce, próspero e melancólico se anunciava aos escravos, o samba que lhes emprenhava um ventre visionário. Nos quilombos, a dor se paria herói. Nos cânticos, a Mãe lhes imputava a certeza. Algo se daria num tempo justo, pois o índio, o negro e o branco na cumbuca de pletoras dariam um bom caldo de gemer. Que aguardasse quem assim o quisesse. E a coisa grande crescia. Espicha daqui, espicha dali e as terras se alastravam como uma tiririca insana. Do litoral para o interior, a mata cedia espaço ao facão e ao estresse das mãos nervosas dos miolos moles. A ganância engordava no nascedouro. Um país borboleta metamorfoseava lagarta de tantos interesses. A cana, o café, o ouro, as pedras preciosas e também o gado faziam da terra um útero prestimoso. Abertos os portos, já podíamos exportar algodão para importar o tecido fino dos ingleses. Expulsos de uma Europa cansada de exaustivas colheitas mercantis, a largueza de continentes virginais atraía italianos, alemães, japoneses, cristãos novos… O comércio e suas novas ideologias liberais empurravam o homem branco na direção do futuro. Ideais revolucionários emergiam em busca de solo fértil. Filósofos voltam suas penas contra uma falida aristocracia de fachada. A Revolução Francesa mudaria o mundo e a maçonaria faria as devidas induções. O homem, agora, não precisava ter sangue nobre para ser alguém. A iniciativa individual ganhava um status que jamais perderia.
Colônias espanholas, inglesas e portuguesas se desejavam livres. A América dava seu grito e, aqui, a Inconfidência Mineira, a Conjuração Baiana… davam serventia ao baraço nos pescoços libertários, enquanto expressavam sentimentos nativistas cada vez mais difíceis de conter. João VI, fugido de Napoleão, que avançava suas tropas a todos que apoiassem os ingleses, deixa o Tejo às pressas. Rabo entre as pernas, ele pisa as terras do pau-brasil em março de 1808. Com uma mãe louca e uma esposa ensandecida de ambição e da pasmaceira do marido, a trupe levanta a lona. Respeitável público, os títulos de nobreza eram despejados no calor dos favores. Bonzinho, o rei zanzava de um lado para o outro aguardando os acontecimentos. Daqui, heroicamente, decreta guerra aos franceses. Que espécie de gente é essa que, matriz de nosso sangue, anima as noites da colônia com gargalhadas nervosas de um poder prestes a ruir? Fundávamos a iminência. A qualquer momento algo de terrível poderia acontecer. A Independência não tardaria, mas, sem antes, o Banco do Brasil nos disfarçar modernos e o Jardim Botânico pudesse, então, antever um país ícone das verdes matas. Como também, Debret e Taunay que, trazendo o olhar dos salões parisienses, cumpriam a missão de perfumar as cacas de nossas cocheiras com frescos aromas. A onda liberal avançava. A colônia, frouxa de seus contornos, aspirava uma sorte que parecia imprevista. O mundo questionava uma autoridade compulsória. O comércio expandia e o poder, aos poucos, saía das mãos de quem possuía sangue nobre para os que detinham o capital. Emergindo uma hierarquia nem tanto hereditária, mas sim, fruto do empenho de articulações e manobras, era cada vez mais possível as revoltas desejarem novas vantagens.
Pernambuco, Bahia, Maranhão, Grão-Pará…, também Washington, Bolívar, Martin assoreavam terras socadas pela estreiteza com ideais liberais, republicanos, federativos… A abertura dos portos e a longa estada da família real aborreciam os portugueses. O rei, a rainha e comitiva retornam, então, à sede. Pedro fica e torna-se Imperador do Brasil numa frágil independência negociada. Os Andrada e sua Loja Espiritual aconselharam, até as últimas, os passos de um país aspirante à soberania. O primeiro reinado transcorre sob forte tutela inglesa. O escravismo, sustentado por uma economia rural, caminhava para o seu impasse. A noite das garrafadas é a sonoplastia do desgosto. Um imperador, tão perdido quanto português, espreita o desfecho. Os conflitos crescem com a primavera das revoluções.
A nau, sedenta de seu rosto, ruma em direção ao lago de uma incógnita imagem. Pedro abdica. Seu pequeno filho é tutorado por Bonifácio. Uma trindade provisória o suporta. Mas os tempos não são mansos. Balaiada, Farrapos, Insurreição Praieira… O espírito libertário contagia a madorna. O império sobe, o império desce. O filho do pai, o segundo Pedro, vem vindo como Deus quer. Mas como sobreviver a tantas lutas separativas? Como se permanecer império, quando há uma República Federativa que pede passagem? A extinção do tráfico negreiro, a Lei do Ventre Livre e a dos Sexagenários antecipavam o que, de Isabel, a princesa, viria: a tão esperada canetada. O preto é livre!
Um país, de fato, pedia para nascer. A aristocracia rural sofrera com este duro golpe. Seus cofres engordavam às custas de uma África ultrajada. E por isso, virara as costas à monarquia, dando apoio aos republicanos. O positivismo de Comte, as disputas militares e as questões sucessórias empurravam o império para o precipício de um tempo esquecido. As guerras pela independência. Em 1824, a primeira Constituição é promulgada e, dois anos depois, morre João. Trinas regências marcam períodos agitadíssimos. Deodoro resistia a Visconde de Ouro Preto e, Pedro de Petrópolis, viu seus intestinos gelarem: o governo provisório. Da Bahia, os sertões viram o beato Conselheiro e seus jagunços resistindo aos tempos tão acelerados quanto desrespeitosos. Que progressos servem a evolução? De quantas fatias se faz um inteiro? De quantas tragédias se faz um país? Puzzles de Brasil foram melhor encaixados. Acre, Amapá… enfim, definitivamente incorporados ao território nacional. A primeira república caminhava em quadriênios: Floriano Peixoto, Prudente de Morais, Campos Sales, Rodrigues Alves… A revogação do decreto de dissolução do Congresso. O SPI ameaça proteger os índios. … Oswaldo Cruz, Afonso Pena, Nilo Peçanha… A Guerra de 19 eclode. No Forte de Copacabana, a revolta e, nas escadarias do teatro, os Andrade, Villa-Lobos, Tarsila… fazem uma semana de Arte.
Abaixo as naturezas-mortas! Viva a dor do preto descamisado! Prestes cria uma coluna da resistência. Ao Brasil, cabia-lhe a sua exata cara, como os canaviais tatuados. Em 29, a depressão consumia os cofres. As oligarquias cafeeiras enfraqueciam dia-a-dia. Não bastava um presidente. Alguém que chamasse a si a responsabilidade, com firmeza e carisma, tomaria o pulso. Um Estado Novo se anuncia. Vargas olha para o trabalhador. Ministérios são criados e um sangue novo parece correr.
Outro solavanco acontece: guerra aos países do eixo. FAB, FEB e o país cooperava com o conflito. Novos partidos insinuam uma democratização. Eurico Gaspar Dutra é a ponte entre os dois Getúlios. Petrobrás e o MEC são criados. O presidente se mata. Uma catarse coletiva prepara os anos desenvolvimentistas que se seguiram: Juscelino faz Brasília. Furnas, SUDENE, empresas multinacionais entram com a força da modernidade.
O décimo terceiro salário é criado. Goulart instiga os militares. Ventos comunistas ameaçam interesses. Golpe. 1964 é uma mancha na história de um povo ávido de expressão, ainda que imaturo em suas reivindicações. O populismo dá vez a um regime autoritário. O Marechal Castelo Branco cria o Banco Central e o sistema financeiro fica sob um hermético controle. A SUDAM se ocupa da Amazônia.
Os inúmeros partidos são extintos. O bipartidarismo, doravante, terá que dar conta de nossa pluralidade. Atos Institucionais dissolvem a UNE e o Comando Geral dos Trabalhadores. Costa e Silva edita o AI-5. Plenos poderes para fechar o Congresso. FUNRURAL e MOBRAL: o Brasil queria ler e otimizar o campo. Médici inventa a Transamazônica, o PIS, o capital estrangeiro entra com facilidade e Pelé volta do México com o caneco. Uma festança. O milagre brasileiro oculta a doença incubada. Uma crise energética mundial coloca Geisel em maus lençóis. O preço do petróleo dispara. Figueiredo pega inflação de 20% ao ano. A dívida externa consome bilhões de dólares dos cofres públicos e o carrasco do FMI é a iminência da lâmina num pescoço ingênuo de tão espertinho. “Gosto de levar vantagem em tudo, certo?!” A lei de Gerson inspira canhotas soberanias. Diretas Já! Uma Nova República pedia, proscrita a farda verde oliva. Vão-se os militares e, de São Luis, Sarney aponta. A crise se instala. A inflação crescia a cada duas horas. Os fiscais do presidente não dão conta e o quebra-quebra anuncia planos mirabolantes: Cruzado, Bresser, Verão, Cruzado Novo… Ministros caem, ministros sobem.
Assembléia Constituinte. Que tal uma nova constituição? Ulisses Guimarães, o paladino da justiça, vai a Tróia para a redação da Carta e, um dia, esvai-se no tempo, deixando um país Penélope a tecer sua própria mortalha, enquanto espera que seu incorruptível herói retorne dos oceanos da esperança, lugar, aliás, de onde ele nunca voltou. Collor iria revitalizar a senilidade de nossa crônica juventude, quando suas falcatruas o traíram num impeachment espetacular. Ele, o marajá modernoso, entuba a ira. Privatizações e carrões importados levaram-nos à tragédia de sua família que iria nos devolver o rubor à face. FHC, o ministro de Itamar, deu nó apertado no dinheiro que queria voar. Tornou-se, então, o presidente. Chique de seus enunciados, ele, o mais dotado academicamente, nos conduziria a um neoliberalismo a que o carismático Lula daria cores populares. Num contexto mundial de aparência menos instável, nosso herói nordestino se cria em falas simples, diretas e sensíveis ao povo.
E o país avança, se protegendo como pode da vulnerabilidade de um sistema financeiro que se sustenta em bolhas virtuais que aspiram à sorte de não estourar. Uma nova eleição erode a Consciência. Será que desta vez…
*Trecho do Livro – Parição da Presença – O Livro da Inocência Madura
Sergio Seixas e Lygia Franklin