O SAGRADO – por Lygia Franklin
Quando observamos a Vida podemos sentir a presença de uma organização em tudo o que existe, uma ordem: dias que sucedem noites, estações que influenciaram toda a história da vida planetária, a constante dança dos planetas e das galáxias, enfim… Há uma inteligência (que escapa à nossa própria inteligência) que cria, gera e mata ininterruptamente. Há um movimento eterno, gerador de mecanismos de auto-regulação para a recuperação do equilíbrio quando este é perdido em todo o Universo. O apogeu do verão será seguido pelo declínio no outono e no inverno para depois recomeçar, mais uma vez, a ascensão do calor. Isto pode ser considerado no sentido objetivo e no metafórico também.
A maioria das pessoas chama esta grande Inteligência de Deus e a antropomorfisa. Em diferentes culturas seus atributos são percebidos como forças da própria natureza, sendo reconhecidos como animais, plantas, montanhas e fenômenos naturais.
Eu a chamo de Grande Mistério. É uma denominação abrangente e escapa às perigosas definições simplistas, ingênuas ou parciais, já que estamos falando daquilo que é, por sua própria natureza, indescritível.
Impossível definir Deus, pois é aquilo que não conseguimos compreender racionalmente e ultrapassa qualquer definição: qualquer uma O reduziria. Muito menos possível é qualificá-lo: bondoso, severo, misericordioso, fiel,… Deus para mim é uma experiência pessoal e intransferível do Mistério. As tradições religiosas ocidentais primaram por estimular a ideia de que Deus é um pai bondoso, porém capaz de condenar seus filhos a eternos castigos, além de ser algo sempre externo a nós mesmos: criador e criaturas são completamente diferentes nesta concepção (embora façamos imagens do criador à nossa semelhança- como entender?! Coisas do humano). Temos que nos esforçar em cumprir suas leis sob a ameaça de castigos. Na minha visão estas concepções são muito rudes e infantilizadas. Não atendem, pelo menos no nosso tempo ocidental e urbano, ao natural e legítimo anseio que todo ser humano traz dentro de si: viver uma espiritualidade que o devolva ao profundo senso de pertencer ao Universo e não ter medos castradores da realização na vida. Esta é nossa verdade última e exige ser reconhecida pela consciência de cada um. Porém, ao viver as coisas do cotidiano acabamos por ficar completamente afastados destas ideias. Temos que dar conta do que a visão materialista exige e os nossos medos também. Na impossibilidade de incluí-las, há uma transferência inconsciente desta grande realidade para os outros tipos de poderes ou forças, só que, desta vez, desviadas do seu alvo original e por isso, para poderes exclusivamente do mundo concreto. Aí o consumo, o capital, o sucesso social passam a ocupar um lugar fortemente religioso.
Se dedicarmos um pouco do nosso tempo para fazer contato com o Grande Mistério poderemos capturar sua Presença no que existe: na cenoura que nasce do chão, no seu computador, no celular, em um copo de água, nos olhos do nosso cachorro e em todas as coisas completamente habituais, materiais ou não. Ele está dentro e fora de nós sempre. É impossível deixar de perceber o Grande Mistério quando permitimos que a nossa sensibilidade experimente as coisas. Como pode uma abóbora nascer da terra? Como pode um ser inteiro se formar a partir de duas celulazinhas invisíveis? O que dificulta é tentar apreendê-lo através conceitos racionais ao invés de senti-lo. Passar “batido” pelas coisas só nos permite o acesso à dimensão mais rasa de tudo. É verdade que muitas pessoas vivem a vida inteirinha sem considerar aquilo que é impossível qualificar, mas que É. Inclusive pessoas muito inteligentes. O fato de senti-lo provoca em mim vários efeitos. Um dos mais fundamentais é a permissão de me deixar tocar pelo em torno e não me tornar indiferente, é o brotar de um senso de unidade com o Universo espontâneo, além da certeza da impossibilidade de estar abandonada em qualquer situação. Porque tudo é Sagrado e cada um de nós participa deste tudo. Aí a relação com a vida assume outros tons e matizes, a qualidade de sermos muda para mim. Outra coisa também acontece: a percepção de que a minha inteligência e racionalidade não dá conta de tudo que esta Grande Inteligência engendra. A partir daí vivo uma certa entrega, já que tudo o que em mim é alegria e também tudo aquilo que é tristeza, perda ou algo incompreensível é parte deste tremendo Mistério… Não preciso mais carregar ou controlar tudo o tempo todo. No meu coração esta entrega faz-se abertura para a gratuidade, o poder estar bem porque Sou, e não porque tenho.
No entanto isto não quer dizer que fico esperando que as coisas “caiam do céu” ou que eu seja imune às tristezas. Sinto-me indignada com as religiões que nos infantilizam e nos incentivam a abrir mão da nossa responsabilidade sobre a vida que temos e a morte que teremos. A maioria só alimenta medos, dependência e relações superficiais com o sagrado, como se a relação profunda fosse permitida só para os considerados sacerdotes ou “sem pecados”. Penso que a função real das religiões seria a de nos levarem além delas mesmas e além daquilo que o nosso ego geralmente pensa que somos, isto é, em direção a este inexplicável assombro: a experiência de Deus dentro e fora de nós. A presença do Mistério dentro e fora de nós. Isto só se torna sabido através de uma vivência que não necessita de templos nem de sacerdotes. É totalmente pessoal, particular e intransferível. Reside no fundo da alma de cada ser humano , mas só se revela quando nos permitimos senti-la. As tradições religiosas tendem a uniformizar a experiência em Deus através da normatização e cada uma acha que detém a verdadeira posse daquilo que é Inefável.