A MORTE – por Lygia Franklin

Postado em: agosto 9th, 2020 por Rosa Valgode

  • A MORTE – por Lygia Franklin

Existem assuntos difíceis de abordar, porém aprendi que a dificuldade é sinal de necessidade. A realidade atual trouxe a questão da morte participando de todos os nossos dias, objetivamente. Logo, é importante conversarmos sobre ela.
Já vivi a morte de pessoas e bichos amados. É triste pensar na impossibilidade de vê-los, de não poder estar diretamente com eles. Dói. Principalmente quando o ser querido se despediu há pouco tempo,a saudade tritura os dias. Mas não quero nunca abrir mão desta tristeza que sinto pela ausência dos que já foram embora e são importantes na minha vida. Esta emoção é o testemunho do meu amor por eles – não quero perdê-la, já que ela representa a importância deles no meu caminho. Apenas aprendi, por experiência vivida, que a dor dilacerante do período inicial à perda vai, com a ajuda do tempo, se tornando menos pontiaguda, ficando mais doce. Uma dor doce e serena, pacificada. Uma lágrima escreve um poema silencioso no meu rosto diante de uma cena que aguça a memória de alguém que se foi, mesmo tempos depois da sua partida, e isso faz, naturalmente, parte do nosso eterno amor. A lágrima é a joia brilhante que ele, o amor em nós, produziu.
Sei também que a saudade e a tristeza nos humanizam. Elas relembram a nossa dimensão do real, o grau de importância e prioridade que damos às coisas. Por tudo isso, a efemeridade de certas vivências nos devolve ao contato necessário e, tantas vezes, negligenciado com o Mistério e com o Sagrado.
Depois da vivência de uma morte importante vamos precisar de um tempo para o nosso próprio renascimento, já que morremos um pouco com aquela pessoa: uma parte da nossa vida morreu também – ela, a nossa vida, não será mais a mesma. Novamente, isso é o natural. Então, precisamos do luto. Os chineses antigos consideravam que a morte de um familiar próximo demandava três anos de luto e, por três anos, a pessoa ficava isenta de responsabilidades importantes, para ter tempo de se recuperar e de se rever o mais profunda e amplamente possível.  Preocupo-me quando vejo pessoas que se despedem de entes queridos e, rapidamente, arrumam mil argumentações para ficarem “fortes”.  Muitas vezes se utilizam de argumentos espirituais para justificarem isso. Mas, a quem interessa esta “força”?  Ao medo do sentir? O mundo nos ensina, tantas vezes até subliminarmente, a confundirmos sensibilidade com fraqueza. Aí, negamos nossos sentimentos, ligamos o automatismo e nos tornamos mais facilmente manipuláveis – quem não sente passa por cima dos outros e de si, até a nossa dor serve para nos colocar como objeto desse sistema sombrio, se não nos damos conta de certas sutilezas.  A negação da dor da perda é um equívoco emocional: precisamos autorizar os nossos sentimentos verdadeiros a se expressarem pelo tempo necessário. Não se trata de cultivo masoquista da dor, nem apego, mas respeito à verdade pessoal. Isso é completamente diferente de achar que sua vida se acabou sem a pessoa, porém precisa-se de uma elaboração para um novo tempo em nós acontecer; não somos botões que se gira para lá ou para cá.
Participar dos ritos fúnebres tem importância para quem ficou. Embora possa até agudizar a dor naquele momento, o rito contribui, significativamente, para realizarmos aquela despedida dentro de nós. Pessoas que não participam dos ritos de despedida tendem a ficar com uma dor-fantasma inconsciente por muito mais tempo do que as pessoas que vivem todas as etapas desta situação conscientemente. Na impossibilidade de se participar diretamente de uma despedida, vamos precisar criar um momento simbólico para este adeus ser vivido dentro de nós.
A morte nos desafia de diferentes maneiras e mais fortemente do que qualquer outra situação, mas possui um grande tema central: o medo, consciente ou não. Temos medo de sofrer com o próprio processo de morte, medo de morrer porque a maioria não confia no que nos acontecerá após a passagem, medo de ficar longe de quem amamos, de perder as coisas que possuímos, de lidar com o mundo sem a pessoa, medo de que os seres que amamos possam sofrer com a morte deles ou com a nossa, enfim… É medo demais – adubo para mais sofrimento. Uma cultura materialista só aprofunda e alarga mais e mais tantos medos. Para dar conta deste escuro abismo só uma visão espiritual amadurecida, que tem pouquíssimo a ver com a maneira racional e objetiva como vivemos o nosso dia a dia hoje. Mesmo a psicologia sozinha não dá conta.
Por outro lado a maioria das religiões não me respondeu consistentemente sobre este assunto. Acabei por compreender que a morte é um processo tão divino quanto todo o restante da criação e ocorre por diversas razões, algumas insondáveis para nós. Concluí que uma das funções importantes da morte é também a de fazer com que outras partes do humano entrem em ação, sobretudo, fazer com que a nossa inteligência transcendente e imanente possa se manifestar de forma mais ampla e madura.   Essa Experiência Espiritual, que não precisa estar ligada a nenhuma religião organizada, trata-se do encontro com o “Outro dentro de nós mesmos que Sabe” e por isso nos informa, entre outras coisas, que a vida encarnada é só um período da nossa própria Eternidade. A Espiritualidade é a Sabedoria a nos ensinar não só a estar em carne e osso no mundo, mas a nos ensinar a morte como um exercício radical de finalização de um período de desenvolvimento da nossa Consciência para se começar outro, já que tudo, inclusive a própria morte, faz parte de um Grande Plano. Este Plano é gerado pelo Mistério, auxiliado por seres de Consciência mais ampla e por nós mesmos (no geral, de forma inconsciente) para se realizar. Nascimento e morte são dois momentos ritualísticos dentro da longuíssima trajetória individual cuja chegada é nos tornarmos Essência, ou dizendo de outra forma, retornarmos à união absoluta com a Fonte Primordial.
Estes mesmos ciclos de vida-morte-vida acontecem em tudo o que existe na Natureza e nos objetos criados por nós, avisando-nos, portanto, que todo acontecimento é Vida que se cumpre. Não há morte enquanto destruição, só há Vida.  Dentro de mim há “Um que Sabe” isto e também Sabe que já experimentamos a morte e o nascimento muitas e muitas vezes. Quantos milhares de anos de idade temos? E teremos? Posso chamar toda essa percepção de Intuição, já que não há prova racional. Mas, não podemos esquecer que a Intuição é uma função humana normalmente presente em todos nós e desprezada pelo mundo materialista, porém tão real e importante quanto nossas outras inteligências, lembrando que tudo o que não usamos fica meio adormecido, embora possa voltar a despertar se for reconhecido, valorizado e usado. Em mim esta Intuição vibra Verdade.
Morrer é uma situação tão importante que, com o nosso nível de consciência, só damos conta de entender uma parte ínfima dela. Sempre é preciso ter a humildade de se aceitar que existe uma parte imensa da Vida que não conseguimos dar conta. Mesmo em outros assuntos necessitamos desta humildade. É só olharmos para o céu estrelado ou para uma lâmina de microscópio para percebermos a nossa limitação, por mais inteligentes e hábeis que tenhamos nos tornado. Por tudo isso, dentro desta aceitação, cabe a voz daquele “Outro que Sabe”. Para mim “Ele” diz que ninguém morre à toa. Sinto que durante a nossa vida encarnada passamos por momentos diferentes em que a nossa morte é possível. É a nossa necessidade mais profunda de desenvolvimento que determinará o momento certo que ela ocorrerá. Só poderemos desenvolver algumas coisas enquanto encarnados porque esta condição cria situações adequadas para isso, outras pelo mesmo motivo, somente acontecem quando estamos desencarnados. Além do mais, de vez em quando precisamos parar tudo e fazer, distanciadamente, uma avaliação – não é?
Quando escuto tudo isso dentro de mim, imediatamente, me lembro que as pessoas que eu amo e que morreram não podem existir fisicamente para ficarem alimentando o meu desejo e alegria. Elas precisam, sobretudo, dar conta do seu próprio Caminho. Se eu me recusar a entender essa jornada estarei sendo acometida por um egoísmo nada amoroso. Este “Outro que Sabe” me fortalece a memória no sentido de que a morte de uma pessoa, em primeiro lugar, está vinculada ao processo sagrado dela. Através de uma interligação maravilhosa, sua morte também fica a serviço de ajudar, indiretamente, os outros seres que se relacionavam com ela (neste caso, inclusive a mim mesma) a avançarem no seu próprio desenvolvimento de consciência de si. Seja por fazer as pessoas que ficaram aqui amadurecerem, revendo seu sistema de valores, ou através de inúmeras outras questões que podem ser provocadas a partir de uma morte.
Todas as vezes que alguém morre surge uma nova ordem necessária. Só uma Grande Inteligência para conseguir conectar e sincronizar todas estas necessidades. Esta visão espiritual não acaba, magicamente, com a minha dor nem deve fazê-lo, como já disse. Mas, sinto profundamente que uma das formas mais lindas de afirmar o meu amor por alguém é tentar entender e avançar no que ele(a) pode ter me sinalizado com a sua partida. Por isso, quando algum amor meu nasce para o outro lado, insisto em viver o meu luto onde, no silêncio e solitariamente, posso sentir a minha saudade e também posso refletir sobre quais são as coisas que, em mim, precisam mudar daqui para frente, para que eu me torne um ser mais completo e que aquela pessoa era espelho para mim nas suas qualidades e dificuldades. A partir daí, espero que o tempo e o Mistério me ajudem. A Espiritualidade pode impedir o nosso desespero diante da morte, pois a falta da pessoa querida não deve ser agregada a tantos outros sentimentos difíceis de mentirosa nulidade da vida, como é comum acontecer. Ao contrário, é um momento de ampliarmos os sentidos e significados da vida. Por isso mesmo, enquanto encarnados devemos lutar e sermos guardiões da vida aqui, mas quando surge a morte, é preciso conhecê-la.
Por último, gostaria ainda de acrescentar algo. Enquanto tivermos uma relação com a morte assustadora, ela, a morte, vai ficar sendo vista como algo muito ruim e, no fundo, ficará nos assombrando. Se por um lado a canção disse: “ninguém quer a morte…”, algumas culturas desenvolveram outra visão, bem menos sofrida e mais serena.  Na Índia, por exemplo, o Senhor da Morte é o Sr. Yama, uma linda divindade – um homem muito bonito, forte e sensível, com uma flor vermelha nos cabelos e, por isso mesmo, nada assustador.  No México, a Santa Muerte é festejada e mantida numa relação de intimidade com as pessoas que pedem, habitualmente, a sua proteção e a festejam. São maneiras de incluir a relação com a morte sem o medo e o sofrimento que a civilização ocidental na maior parte do mundo, alimenta. O que quero dizer é que, no fundo, sempre achamos que a única situação boa é esta, a de estarmos encarnados, já que predomina em nós uma visão materialista, ou medos, ou muita culpa (a morte como castigo), ou vinganças, ou tudo junto. Há também uma pequena voz que sussurra que podemos, por conta de todas essas emoções, ir parar em algum tipo de inferno depois da morte, não é? Ou, simplesmente podemos acabar… Muitos “ous”. Parece brincadeira, mas não é. Isso possui, inconscientemente, uma influência importante que costumamos desprezar. Como todos nós cometemos erros e equívocos, algumas tradições nos incutem um sentimento de pecado e, portanto, de não merecimento de coisas boas, principalmente após a morte. Mesmo os que se dizem ateus sofrem a pressão destes sistemas de crenças há tantos séculos dominantes e que têm um poder de influência no nosso inconsciente, pessoal e coletivo, nada desprezível: então, além de perder o que temos nesta vida, irmos para uma situação desconhecida, ainda vamos ficar sofrendo castigos e sofrimentos infinitamente…
Mas, se a questão da Vida estiver muito mais ligada ao desenvolvimento da Consciência do que à desobediência as exigências de um Deus que foram contaminadas pela sombra e medos dos homens? Muitas destas exigências me parecem ser mais projeções dos homens do que prerrogativas divinas! E se as outras dimensões da existência forem muito, muito mais incríveis do que a que percebemos aqui? O bebê quando nasce não me parece achar isto tudo aqui tão bom assim. Sua memória recente de outro plano, não só intraútero, está ainda bastante presente.  Não seria ela, boa e confortável?
Várias culturas antigas e indígenas adotaram ritos de morte a serem vividos em vida. A finalidade é a de provocar uma grande mudança naquela pessoa a partir do entendimento verdadeiro de que Morte e Transformação caminham juntas.
O medo da morte provoca um stress residual constante que mina a nossa maneira de lidar com outros assuntos que envolvem riscos e despedidas no dia a dia.  Aí procrastinamos, ficamos em situações frustrantes e vivemos ansiosos. Isto se agrava com o avanço da idade. É comum que esse stress seja tão forte que também gere dificuldade em se acompanhar quem está muito doente. Acabamos querendo nos proteger deste assunto e assim, nos mantemos à distância, perdendo momentos preciosos de trocas e percepções.
A morte é a sagrada mensageira de algo que necessita criar fortes raízes em nós para sermos verdadeiramente livres, para verdadeiramente amarmos:
– é somente no âmago da intimidade com todos os processos da Vida que podemos nos apropriar de fato da nossa História Sem Fim.